quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Depois do Escorpião - Samantha Moraes

 

 A Picada - 1º Capítulo

Descabelada, descalça e pelada, eu me olhava no espelho do banheiro e remoía a frase que vinha repetindo há uma semana:
Perdi meu marido para Bruna Surfistinha.
Perguntava-me, também, quantos homens em São Paulo fizeram programa com Bruna Surfistinha, e por que o meu, de todas as dezenas, centenas, milhares; por que justo o meu foi se casar com ela?
A última pergunta era:
O que há de errado comigo?
Prendi os cabelos num rabo de cavalo e vesti meu roupão de banho.
- Mãããããeeeeee! Tô com fome!
Tenho duas filhas.
- JÁ TÔ INDO!!! - gritei de volta.
Meu casamento tinha acabado há seis meses, e eu já estava farta de chorar. Minha filha Isabella não agüentava mais me ver daquele jeito. Sua maneira de me consolar era chorar junto, e este virou nosso programa de mãe e filha: sentar e chorar. Poucos dias antes, ouvi de Isabella a seguinte frase:
"Mãe, por favor, pare de chorar..."
E como se fosse eu a filhinha bem comportada, parei na hora. Isabella tem seis anos.
Havia duas opções. A primeira era continuar ali: descabelada, descalça e sofrendo. A segunda... Abri o espelho e passei um creme no rosto. Fiz uma make. A segunda era bem melhor. Voltei a me olhar no espelho de corpo inteiro. Não... Não tinha nada de errado comigo, ora essa! A segunda era deliciosamente melhor. Passei um perfume.
Ficaria com a segunda opção. A segunda era o contra-ataque!
Sem querer, havia descoberto um recurso fundamental. Quanto pior me sentia, mais me arrumava, mais cuidava de mim. Quem me visse, pensaria que eu estava incrível. Esse era meu disfarce.
Meninas, vamos sair!
Num gesto automático, busquei a chave do carro em cima da mesinha. Então me lembrei de que há dias, o carro estava com ele. Nesse dia, tudo o que eu tinha era um carrinho de bebê, onde coloquei Marrie. Com dois anos de idade, ela não terá lembranças da época em que teve um pai em casa. Resolvi que a partir desse dia, quem passaria a pegar o carro emprestado seria ele, e não eu, que estava a pé, com duas crianças. Mandei uma mensagem de texto informando minha decisão.
Pronto! Ele que arranjasse outro carro para passear com Bruna Surfistinha.
O celular tocou. Era a produção do Superpop. Devia ser a sétima vez que me telefonavam naquela semana.
Mas eu já falei pra vocês que não vou!
Então, expliquei mais uma vez o motivo. Primeiramente, por conta do meu trabalho. Sou comissária de bordo: sinônimo de discrição, seriedade e elegância. Uma única aparição no Superpop e eu poderia dizer adeus ao meu emprego.
Eles insistiam. Queriam ouvir o meu lado da história: a mulher traída. Era tamanha insistência que à noite, antes de dormir, eu ouvia aquela voz meio sedutora, meio policial, atiçando a ira da audiência:
"Ela tinha um casamento perfeito! Casou-se com seu amigo de infância. Seu melhor amigo. Jamais brigavam. Eram um casal feliz, até o dia em que ela descobriu que aquele companheiro, o amor da sua vida, o pai das suas filhas, o amigo de infância que ela achava conhecer como ninguém, era na verdade um homem com desejos perversos. E este homem foi além dos limites da traição. Ele a trocou por uma garo..."
Onde vocês querem ir, meninas?
Mc Donalds!!!
Nesta semana a toalhinha de papel trazia a Arca de Noé com vários compartimentos. Répteis no porão, girafas e elefantes bem no meio, e lá em cima os pássaros. Tudo muito bem organizado, exatamente o que eu queria para a minha vida. Abri meu caderninho vermelho e rabisquei algumas anotações. Fazer anotações passou a ser um hábito.
Desde "A Descoberta", infiltrei-me num mundo de flats, clubes de swing, prostituição digital e mídia, muita mídia. Dissequei a história até encontrar todas as respostas que buscava. Mergulhei num mundo de mentiras e só emergi depois de ter descoberto a verdade.
O marido foi a primeira perda, que detonou um processo de destruição em massa. Perdi minha casa, minha auto-estima, minha privacidade, sono e sonhos, apetite, ânimo e fé, estabilidade financeira, carro, carinho, companhia, seis quilos e uma boa parte da minha saúde.
Nesse dia percebi que queria, sim, contar o meu lado da história. Não fui a primeira, nem serei a última mulher a perder o marido para uma prostituta. Talvez o valor da minha história esteja no aprendizado.
Conheço-o desde os sete anos de idade. Assim, não foi difícil identificar a transformação. Acredito, mesmo, que ele tenha sido envenenado. Até a mudança de nome é apropriada. Este Pedro, nacionalmente conhecido como o homem apaixonado e sem preconceitos, que se casou com Bruna Surfistinha, não tem nada a ver como o meu João.
Aprendi que é do próprio veneno do escorpião que obtemos a cura. Eu recebi minha dose, e foi a pior dor que senti na vida. Duvido que algum dia sentirei algo igual. Mas também foi destilando este veneno que encontrei o antídoto.

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